Oi Pessoal,
Antes de começar gostaria de explicar porque usei a expressão "flaneur" localizada antes do título deste post. Esta palavra deriva do verbo francês flâner e significa, segundo Edmund White, "figura que caminha tranqüilamente pelas ruas, observando cada detalhe, sem ser notado, sem se inserir na paisagem". Acho que esta abordagem personifica bem o meu modo de trafegar pelas paragens do Rio de Janeiro, sejam elas ruas, pontos turísticos ou recintos gastronômicos. Considero-me um "flanador" nato! (agora como um neologismo do verbo "flanar", um extrangeirismo incorporado ao português)
Nesta tarde nublada no Rio de Janeiro, resolvi dar uma passada na Feira de São Cristovão - também conhecida por Pavilhão das Tradições Nordestinas, Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, ou ainda, "Feira dos Paraíbas" (sem preconceito, viu?) - com minha mãe e minha avó. Para não correr riscos, almoçamos num restaurante, tipo "pé limpo", picanha de sol com acompanhamentos.
Gostei do passeio, mas confesso que fiquei um pouco decepcionado. Sei lá, esperava um lugar um pouco mais limpo e organizado, com uma variedade de deixar qualquer um desnorteado. Na verdade, o que encontrei foi uma repetição do mesmo... todas as barracas vendiam praticamente os mesmos produtos, os restaurantes os mesmos pratos.
Em termos de ingredientes, temos: manteiga de garrafa, refrescos (de gaviola e cajuína), o célebre guaraná Jesus, cachaças, queijo coalho, feijões (frescos como o verde e secos como o de corda) e favas secas, rapadura, melado e uma infinidade de farinhas de mandioca e gomas de tapioca como sendo os artigos típicos das barraquinhas. Nos restaurantes, era muito comum ler nos cardápios as palavras carne de sol, baião de dois, cabrito, buchada de bode, sarapatel, angu a baiana, etc. Acho que a feira deveria mudar o nome de "tradições nordestinas" para " tradições sertanejas".
Por favor, não me levem a mal, mas para mim o nordeste é tão rico e variado que esperava encontrar uma referência em igual magnetude. Cadê os peixes e frutos do mar da costa, que não são tão dificeis de se encontrar no Rio, e seus respectivos pratos? Cade a variedade de culturas que vai do baiano e sua comida de santo, passando pelo próprio sertanejo até desembocar em culturas como a do alagoano, do pernambucano, do cearense, do potiguar, etc? Alías, os potiguaras - palavra do tupi-guarani que quer dizer comedor de camarão - eram os nativos que habitavam a região litorânea do que hoje são os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Camarão é artigo raro por lá, a excessão das variedades seca e defumada.
Gente, não sou nenhum expert em se tratando de Nordeste, mas, o pouco que vi, me agrada muito: moquequas, bobós, acarajés, vatapás, carurus, quindins de iá-iá, bolos Souza Leão, de rolo, cartolas, pitus e outros crustáceos, grelhados, ensopados, caldinhos variados como o de sururu, carnes de fumeiro, além dos pratos citados anteriormente. Sou um grande defensor da cultura nordestina a ponto de colocar a sua culinária como sendo a mais "internacional" delas. A cozinha baiana, em especial, me faz lembrar muito a tailandesa sob alguns aspectos. Aliás, me considero um pouco transgressor ao colocar a culinária regional de todos os estados brasileiros no mesmo patamar. Isso inclui também a cozinha do Norte; sem nenhuma espécie de classificação segregadora. Penso que, hoje em dia, existe uma apologia muito grande a comida indígena do Pará com sendo a original, a legítima culinária brasileira.
Discordo... acho que somos fruto de três etnias: índios, europeus e africanos. Logo, a culinária que melhor representa o Brasil é fruto desta miscigenação. Defender a pureza é desprezar um característica fundamental do nosso povo. Parece que quase todo brasileiro sofre, interiormente, de uma espécie de complexo de culpa por ser descendente de portugueses, aqueles "homens malvados que dizimaram os pobre coitados dos índios". Tendemos a nos afastar de tudo que é fruto da herança colonial portuguesa e a supervalorizar aquilo que é nativo, indígena. Gente, como pensava o nosso querido Gilberto Freyre, não é possível compreender a alma do povo brasileiro em dissociado, criando compartimentos. Somos pluri e uno a mesmo tempo, exatamente como a santíssima trindade. Amén!
Por falar em Gilberto Freyere, a cultura pernambucana me desperta um certo fascínio. Lembra-me muito o Rio de Janeiro: a comida com toques portugueses, as ruas decadentes com reminiscências do período colonial, o carnaval de rua com seus blocos, frevos e marchinhas, a elite extremamente culta, ainda meio encastelada, em contaste com o povo "trabalhador e sofrido".
Não quero aqui desprezar a riqueza que a selva amazônica tem a nos oferecer... nem a cultura milenar da sua população tipicamente indígena. Adoro tudo o que é brasileiro. Ponto.
Como já me extendi muito, vou logo aos artigos que comprei na feira: manteiga de garrafa, inhame gigante, farinha d'água do Maranhão, tapioca, queijo manteiga, geléia de bacuri, pequi em conserva e cajuína. Infelizmente, não havia nenhuma venda de ervas ou legumes frescos. Para falar a verdade até havia, mas vendia o trivial (alface, agrião, cheiro-verde, coentro, etc) e de baixa qualidade. O único produto não corriqueiro era um molho de vinagreira murcho, seco que nem o sertão.
A idéia para a manteiga de garrafa é a de elaborar um molho béarnaise do Norte que leva ainda gema de ovos, tucupi, jambu, chicória-do-Pará, alfavaca e pimenta-de-cheiro. Este molho acompanharia uma espécie de fish and chips brasileiro feito com pintado e mandioca frita. A massa para empanar o peixe seria feita de tapioca ou polvilho azedo. Estou estudando este prato e, assim que chegar a uma versão definitiva, publico a receita aqui.
O inhame, também conhecido aqui no Rio por cará (quando vamos para o norte, a nomenclatura, corretamente, se inverte), estava jovem e com a casca fina. Comprei um dos menores... tinha 2,5 kg. Caso escolhesse os maiores, seu peso passaria tranqüilamente dos 7 kg. Interessante e assustador. Quero aproveitá-lo para fazer te tudo um pouco: purê, espuma, chips, etc.
Ainda estou pensando no que vou fazer com a farinha d'água do Maranhão... talvez tente cozinhá-la no vapor para depois temperar a gosto, seguindo a técnica sugerida pelo restaurante Tordesilhas para o preparo da "farinha ovinha de uarani", uma espécie de couscous brasileiro.
A tapioca é para fazer muitos beijus.
Com o queijo manteiga vou fazer cartola de sobremesa (com banana, açúcar e canela) para matar as saudades de Pernambuco. Uma prima minha veio hoje aqui em casa me mostrar fotos recentes de sua viagem que incluiu Recife, Olinda e Porto de Galinhas. Poxa, fiquei chateado por não ter tomado banho de argila em Carneiros, nem praticado megulho em Maragogi (já no estado de Alagoas, quase na fronteira com Pernambuco).
A geléia de bacuri foi um impulso... falava eu recentemente desta frutinha, que me lembra o mangostão (por sinal, também adoro), quando me deparei com um vidro desta iguaria. Já provei e atestei: estava muito boa. Uma pena que a fruta cozida perca boa parte do seu frescor, nem se comparando ao original. Porém, vou ver se preparo um molho agridoce para acrescentar num prato especial ou, então, passo no pão com um pouco de queijo manteiga derretido mesmo.
O pequi em conserva tem duas utilidades: testar o purê de batata com pequi do Alex Atala e fazer um sorvete de sobremesa usando a técnica do gelo seco, numa outra inspiração que veio do restaurante Tordesilhas. Para acompanhar, ao invés de compota de maracujá, vou optar pelo doce de laranja-da-terra ou cidra, que estavam e-nor-mes a última vez que as vi no hortifruti aqui perto de casa. Um confit de banana d'água também cairia muito bem.
Por fim, vou falar da cajuína, um refresco delicioso muito comum no nordeste. Ele é feito a partir de sumo de caju espremido, sem açúcar, e posto para decantar até ficar clarificado. Muito bom, possui notas aromáticas que lembram vagamente mel de engenho e própolis. Também tem aquele sabor peculiar de suco de maçã clarificado. Também perde um pouco em frescor, mas ganha outras nuances interessantes para uma sobremesa. Talvez use num petit four tipo bala de gelatina com cachaça, recoberta de chocolate amargo. Ou ainda, reduzido em fogo baixo até ganhar a consistência de calda, ou melhor dizendo, melaço de caju. Vocês já provaram caju-passa alguma vez? Em caso negativo, deveriam experimentar... assim como a carambola-passa também.
Por hoje chega! Apesar desta postagem estar um pouco longa e enfadonha... espero que gostem.
Com Açúcar e com Afeto;
Bruno MOREIRA-LEITE.